dawntown

Havia completado quinze anos quando pelo mais improvável dos acasos descobriu Pessoa. Tropeçou mal se recorda onde e em que circunstâncias no Livro do Desassossego. Possuído sem contemplações pelo inevitável remoinho de vertigens sorveu as páginas de Soares como se em vésperas do apocalipse. Dias depois cruzou-se com um carismático rapaz do bairro, já na casa dos vinte, a quem revelou, exultante, a descoberta. Em resposta, o moço compôs um ar grave e apreensivo. Olhou-o fixamente durante alguns segundos cortando apenas o silêncio para afirmar em tom repreensor o seguinte:

Jus
Jamais conferir-lhes maior importância do que de facto merecem. Amigos, amantes ou inimigos.

Esses velhos quiça saudosos da sua mocidade mas sem inveja dos jovens. Lá saberão eles que a juventude é um poço sem fundo de desperdícios. Um aterro hormonal.

Ouvindo o disco descarta-se sem hesitações a ideia publicitada de que se trata de uma lavradora hábil do fértil solo musical brasileiro. O apetrechamento electro-digital e os contornos londrinizados quer da música quer da persona não deixam travo a imperativo. Não se espreita ali qualquer viela futurista relevante. Mas fica-lhe bem a irrequietude discursiva comprovada umas quantas semanas atrás em entrevista televisiva. Num país de entrevistados servis e submissos soube a pouco ver uma jovem sem papas na língua, nem constrangimentos de espécie alguma frente às câmaras, rebater veemente o chorrilho de lugares comuns papagueado pela anfitriã.

Entrevistadora - Mas o Brasil há muitos anos que está na moda...

Entrevistada - Qual Brasil?!

E assim por diante. No final, parafraseando Adriana, a entrevistada tinha literalmente devorado a entrevistadora, de que apenas restaram, em estúdio, parcas ossadas.

A esperança pode ser um lugar perigoso, mas é o único habitável.

Diálogo
Um democrata genuíno segrega obrigatoriamente doses mortíferas de cinismo.

Sugar
Não foi Ferreira Gullar quem admitiu adocicar o café matinal com a amargura de vidas alheias?